O CHAPÉU
Planejei meticulosamente o assassinato de Manuel Soares.
Podia fazê-lo com as próprias mãos; preferi, porém, contratar um pistoleiro.
Para que Isabel não sofra, ou não sofra tanto, é
imprescindível tirá-lo do caminho. Se eu próprio o matasse, o complexo de culpa
iria atormentá-la, tornando impossível o grande e mais intenso amor de sua
vida, fogo em que se tem consumido lentamente (emagrece e chora em silêncio,
tem os olhos ardidos e o corpo trêmulo) e entre um gemido e outro de prazer
eles haveriam de ouvir seu riso sarcástico e maldoso.
Mas para eliminá-lo da face da Terra, arrancá-lo da
cidade como se fosse uma erva maldita. Foi preciso antes que eu o odiasse. Por
isso, dia após dia (somos colegas de repartição), procurei descobrir nele
atitudes dissimuladas, falsidades, orgulho, mesquinharias que me dessem motivação para levar adiante o
meu intento. O ódio foi alimentando-se do conhecimento. Hoje pela manhã atingiu
o limite máximo, quando entreguei ao pistoleiro a quantia estipulada para o
crime.
- Exatamente às 20 horas, todas as noites, ele sai de seu
apartamento na rua G, prédio 203. Hoje é segunda-feira, portanto estará vestido
de calça de linho branco, camisa azul-marinho e chapéu de feltro. Preste
atenção ao chapéu. É um dos últimos homens a usá-lo nesta cidade. Atire assim
que atravessar a porta de vidro do edifício.
O pistoleiro recuou e, sem dizer sequer uma palavra, saiu
da sala.
Os longos anos de convívio e o plano longamente
arquitetado me possibilitaram conhecer todos os hábitos de Manuel Soares. Sim,
não há possibilidade de engano. Exatamente às 20 horas estará na calçada,
tirará o chapéu e baterá com a mão sobre o feltro (para retirar o pó), olhará
indeciso para ambos os lados e enfim optará pelo direito, caminhará durante 45
minutos, ora fumando, ora assobiando uma velha canção portuguesa, e depois
retornará ao apartamento. Suponho que antes de dormir mergulhe a dentadura
postiça num copo-d’água, displicentemente.
Hoje durante o expediente, surpreendi-o agitado em
diversas circunstâncias, esfregando as mãos com impaciência. Duas ou três vezes
foi ao banheiro, atitude totalmente inabitual. Pressente alguma coisa? E se na
hora H resolver não fazer seu passeio? E se estiver com cólicas? Um medo
inconsciente? E se no exato momento passar pela rua um sujeito qualquer vestido
de forma semelhante e o meu contratado disparar sobre um inocente?
Não. Absolutamente não é hora de pensar em tais
possibilidades. Manuel Soares será assassinado dentro de cinco minutos. O
relógio da sala avança para o instante fatal.
Vou apanhar o chapéu e descer de encontro à bala que me
espera.
Charles
Kieffer. Antologia Pessoal. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.
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