sábado, 7 de junho de 2014

O CHAPÉU

 O CHAPÉU

            Planejei meticulosamente o assassinato de Manuel Soares. Podia fazê-lo com as próprias mãos; preferi, porém, contratar um pistoleiro.
            Para que Isabel não sofra, ou não sofra tanto, é imprescindível tirá-lo do caminho. Se eu próprio o matasse, o complexo de culpa iria atormentá-la, tornando impossível o grande e mais intenso amor de sua vida, fogo em que se tem consumido lentamente (emagrece e chora em silêncio, tem os olhos ardidos e o corpo trêmulo) e entre um gemido e outro de prazer eles haveriam de ouvir seu riso sarcástico e maldoso.
            Mas para eliminá-lo da face da Terra, arrancá-lo da cidade como se fosse uma erva maldita. Foi preciso antes que eu o odiasse. Por isso, dia após dia (somos colegas de repartição), procurei descobrir nele atitudes dissimuladas, falsidades, orgulho, mesquinharias  que me dessem motivação para levar adiante o meu intento. O ódio foi alimentando-se do conhecimento. Hoje pela manhã atingiu o limite máximo, quando entreguei ao pistoleiro a quantia estipulada para o crime.
            - Exatamente às 20 horas, todas as noites, ele sai de seu apartamento na rua G, prédio 203. Hoje é segunda-feira, portanto estará vestido de calça de linho branco, camisa azul-marinho e chapéu de feltro. Preste atenção ao chapéu. É um dos últimos homens a usá-lo nesta cidade. Atire assim que atravessar a porta de vidro do edifício.
            O pistoleiro recuou e, sem dizer sequer uma palavra, saiu da sala.
            Os longos anos de convívio e o plano longamente arquitetado me possibilitaram conhecer todos os hábitos de Manuel Soares. Sim, não há possibilidade de engano. Exatamente às 20 horas estará na calçada, tirará o chapéu e baterá com a mão sobre o feltro (para retirar o pó), olhará indeciso para ambos os lados e enfim optará pelo direito, caminhará durante 45 minutos, ora fumando, ora assobiando uma velha canção portuguesa, e depois retornará ao apartamento. Suponho que antes de dormir mergulhe a dentadura postiça num copo-d’água, displicentemente.
            Hoje durante o expediente, surpreendi-o agitado em diversas circunstâncias, esfregando as mãos com impaciência. Duas ou três vezes foi ao banheiro, atitude totalmente inabitual. Pressente alguma coisa? E se na hora H resolver não fazer seu passeio? E se estiver com cólicas? Um medo inconsciente? E se no exato momento passar pela rua um sujeito qualquer vestido de forma semelhante e o meu contratado disparar sobre um inocente?
            Não. Absolutamente não é hora de pensar em tais possibilidades. Manuel Soares será assassinado dentro de cinco minutos. O relógio da sala avança para o instante fatal.
            Vou apanhar o chapéu e descer de encontro à bala que me espera.
Charles Kieffer. Antologia Pessoal. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.

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