sábado, 7 de junho de 2014

UM APÓLOGO

APÓLOGO – Narrativa que expressa uma verdade moral por meio de personagens de índoles diversas, imaginários ou reais, inanimados ou não. Confunde-se facilmente com a fábula (que é centrada nas relações que envolvem coisas ou animais) e com a parábola (história somente de seres humanos e, normalmente, de cunho religioso).

Um apólogo

                Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
                - Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
                - Deixe-me, senhora.
                - Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
                - Que cabeça senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
                - Mas você é orgulhosa.
                - Decerto que sou.
                - Mas por quê?
                - É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
                - Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora  que quem os cose sou eu, e muito eu?
                - Você fura o pano, nada mais, eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
                - Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
                - Também os batedores vão adiante do imperador.
                - Você é imperador?
                - Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
                Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa. Que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando, orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
                - Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo, eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
                A linha não respondia nada, ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas.  A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta da costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
                Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolcheteando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
                - Ora agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
                Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
                - Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
                Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
                - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
ASSIS, Machado de. Contos Consagrados. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997.p. 111 – 112.

( Machado de Assis é considerado um dos maiores escritores brasileiros devido à atemporalidade de suas histórias e à análise psicológica que faz de seus personagens.)

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